Por Maurício Fiore
Pouco tempo depois da prefeitura do Rio de Janeiro, agora é a vez do governo paulista adotar uma política de atenção aos dependentes de drogas baseada na internação compulsória.
O “problema do crack” parece ter se tornado um dividendo eleitoral de
peso e, assim, motivado as esferas federais, estaduais e municipais a
se movimentar, infelizmente, em busca de soluções rápidas que ignoram
evidências e afrontam direitos. As ações recentes são, na verdade,
focalizadas em grupos específicos de pessoas que ocupam regiões
degradadas das cidades e faz uso da forma fumada e barata de cocaína.
No caso de São Paulo, a chegada do crack se deu nos fins dos anos
1980. A partir de meados dos anos 1990, a região da Luz e adjacências,
já degradada, foi progressivamente se tornando um espaço onde os
consumidores se concentraram para encontrar crack e ter liberdade em
usá-lo. O crack não inventou as populações marginalizadas que moram no
Centro como forma de sobrevivência, mas foi acolhido por muitos deles,
principalmente por aqueles em situação de rua. Além disso, muitos
consumidores de crack vieram das periferias, onde se sentiam ameaçados.
Agrupados, trafegando numa vigília nervosa, com um gestual agressivo, a
existência dos “craqueiros” tornou-se socialmente insuportável porque
não se esconde, porque é visível.
Só uma pequena parte dos consumidores de crack da cidade está no
Centro, mas não nos enganemos sobre a intenção primeira de todas essas
ações recentes, exemplificadas nos episódios de violência de janeiro de
2012: uma tática de limpeza desses espaços, travestida de “cuidado aos
dependentes”, por meio da retirada higienista de populações indesejadas.
É evidente que o consumo do crack – em muitos casos associado à
compulsividade e a sérios danos à saúde e à vida social e afetiva – tem
que ser alvo de atenção do poder público. Mas políticas públicas não
podem se pautar no alarmismo em torno da ideia de que há uma epidemia de
crack. A incontestável disseminação dessa droga pelo país não evidencia
a existência de uma epidemia, pois, não obstante suas graves
consequências, a prevalência do consumo de crack é pequena se comparada a
de outras substâncias psicoativas com alto potencial de dano, como o
álcool, cuja escala epidêmica é consensual.
Fala-se também do crack como um forte combustível para a violência.
De fato, assim como outras drogas ilegais, seu mercado clandestino está
associado ao crime e, portanto, à violência. Mas a relação entre o crack
e a violência não é automática, haja vista, por exemplo, que o número
de homicídios em São Paulo caiu no período em que o consumo da droga se
expandia. Se há uma associação sustentada pelos dados, é a maior
predileção de populações vulneráveis e de bairros mais pobres pelo
crack, seja no Brasil, nos demais países da América Latina ou nos EUA,
onde ele surgiu.
A criação de um tribunal de “campanha”, no qual juízes e promotores,
auxiliados por médicos, decidirão em algumas horas quem será tratado por
meio do confinamento é um atentado contra a Lei 10.216/2001, marco da
luta contra o trágico modelo de confinamento manicomial.
Ela estabeleceu limites para as internações contra a vontade, que só
devem ser prescritas quando esgotadas todas as alternativas ou em casos
de risco eminente de morte. Além disso, a Organização Mundial de Saúde
pediu para que os países abandonassem a política de internações
compulsórias, pois elas não só acarretam violações de direitos humanos,
como são pouco eficazes para a maior parte dos casos.
Internar parece uma solução atraente porque nos remete a um contexto
de proteção, mas, por estar sustentada no isolamento artificial dos
indivíduos, não resolve o maior desafio para a continuidade do
tratamento da dependência, que é a vida fora dos limites da clínica.
Quando ocorre à força, a chance de uma internação ter bons resultados cai ainda mais.
A dependência química não é “uma doença como apendicite, pneumonia”,
como declarou recentemente o médico e governador de São Paulo, Geraldo
Alckmin. As evidências científicas a definem como um transtorno
complexo, no qual a relação patológica do sujeito com a(s) substância(s)
se instala a partir de uma confluência de fatores psíquicos,
bioquímicos e sociais.
No caso da dependência de crack, a trajetória de muitos consumidores
que circulam pelo Centro é marcada por privações e dificuldades de
diversas ordens. Interferir nesse difícil contexto de vida, com a adoção
de políticas de reinserção no mercado de trabalho, de reforço dos
vínculos comunitários, de educação formal, de acesso aos cuidados
básicos de higiene e saúde, entre outras ações – é parte fundamental de
uma política que, de fato, esteja preocupada em cuidar dessas pessoas,
não apenas tirá-las de nossas vistas.
Além disso, para defender a internação, é comum se desqualificar a
rede pública de atenção à saúde mental, principalmente os Centros de
Atenção Psicossociais (CAPs). Se há um grave problema da rede, é sua
estrutura insuficiente, por vezes precária. Portanto, os resultados que
seriam colhidos pelo investimento na qualificação da atenção
psicossocial são ignorados pelo lobby da internação, sedento por
recursos.
Enfim, cabe dizer que as dramáticas histórias de vida não são
justificativas que desresponsabilizam os dependentes de crack; ao
contrário, o caminho mais frutífero é reforçar sua capacidade de
decisão, oferecendo cuidados e alternativas. A opção pelo confinamento
forçado não resulta em proteção, mas no enfraquecimento do fator mais
relevante para o tratamento da dependência: a vontade individual.
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