terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O enfrentamento à pobreza nos anos recentes

Como sabemos, com a Constituição de 1988 são colocadas novas bases para o atual Sistema de Proteção Social brasileiro com a definição da Seguridade Social e o reconhecimento de direitos sociais das classes subalternizadas em nossa sociedade.
Em seu artigo 194, a Constituição define a Seguridade Social como um "conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social".
 A noção de Seguridade que emerge na Constituição brasileira apresenta-a como um sistema de cobertura de diferentes contingências sociais que podem alcançar a população em seu ciclo de vida, sua trajetória laboral e em situações de renda insuficiente. Trata-se de uma cobertura social que não depende do custeio individual direto. São objetivos da Seguridade Social:
a universalidade de cobertura e de atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e dos serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com a participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo nos órgãos colegiados. (Parágrafo Único do artigo 194 da Constituição Federal)
Alguns aspectos devem ser destacados entre as inovações constitucionais em relação ao sistema protetivo brasileiro: a centralidade da responsabilidade do Estado na regulação, normatização, proposição e implementação das políticas públicas no âmbito da proteção social e a proposta de descentralização e participação da sociedade no controle das políticas sociais. A perspectiva de articular e integrar políticas também emerge nesse contexto. Para estudo do Ipea a Constituição de 1988 redesenha "de forma radical o sistema brasileiro de proteção social, afastando-o do modelo meritocrático-conservador e aproximando-o do modelo redistributivista, voltado para a proteção de toda a sociedade, dos riscos impostos pela economia de mercado".
É necessário, porém, ressaltar o fato de que a Constituição brasileira é promulgada em uma conjuntura dramática, dominada pelo crescimento da pobreza e da desigualdade social no país, que vê ampliar sua situação de endividamento (que cresce 61% nos anos 1980), e que se insere em um momento histórico de ruptura do "pacto keynesiano", que vai permitir grande liberdade aos processos de reestruturação produtiva. A pressão do Consenso de Washington, com sua proposição de que é preciso limitar a intervenção do Estado e realizar as reformas neoliberais, a presença dos organismos de Washington (FMI, Banco Mundial) responsáveis por estabelecer as estratégias para o enfrentamento da crise por parte dos países periféricos, e a redução da autonomia nacional, ao lado da adoção de medidas econômicas e do ajuste fiscal são características desse contexto, que, no campo da proteção social, vai se enfrentar com o crescimento dos índices de desemprego, pobreza e indigência.
Ou seja, é na "contramão" das transformações que ocorrem na ordem econômica internacional, tensionado pela consolidação do modelo neoliberal, pelas estratégias de mundialização e financeirização do capital, com a sua direção privatizadora e focalizadora das políticas sociais, enfrentando a "rear­ticulação do bloco conservador" com a eleição de Fernando Collor que busca de diversas formas obstruir a realização dos novos direitos constitucionais (cf. Ipea, 2009) que devemos situar o início do processo de construção da Seguridade Social brasileira. E, como não poderia deixar de ser, a emergente proposta de Seguridade Social não se consolida e mostra-se incapaz de, naquele momento, realizar suas promessas.
É sempre oportuno lembrar que, nos anos 1990 a somatória de extorsões que configurou um novo perfil para a questão social brasileira, particularmente pela via da vulnerabilização do trabalho, conviveu com a erosão do sistema público de proteção social, caracterizada por uma perspectiva de retração dos investimentos públicos no campo social, seu reordenamento e pela crescente subordinação das políticas sociais às políticas de ajuste da economia, com suas restrições aos gastos públicos e sua perspectiva privatizadora (cf. Yazbek, 2004).
É nesse contexto que tem início a construção de uma nova concepção para a Assistência Social brasileira, que é regulamentada em 1993, como política social pública, e inicia seu trânsito para um campo novo: o dos direitos, da universalização dos acessos e da responsabilidade estatal.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a Constituição e a Lei Orgânica da Assistência Social — Loas estabelecem uma nova matriz para a Assistência Social no país, iniciando um processo que tem como perspectiva torná-la visível como política pública e direito dos que dela necessitarem. A inserção na Seguridade aponta também para seu caráter de política de proteção social, voltada para o enfrentamento da pobreza e articulada a outras políticas do campo social voltadas para a garantia de direitos e de condições dignas de vida.
Inovação é afirmar para a assistência social seu caráter de direito não contributivo, (independentemente de contribuição à Seguridade e para além dos interesses do mercado), ao apontar a necessária integração entre o econômico e o social e ao apresentar novo desenho institucional para a assistência social. Inova também ao propor a participação da população e o exercício do controle da sociedade na gestão e execução das políticas de assistência social. Tendência ambígua, de inspiração neoliberal, mas que contraditoriamente pode direcionar-se para os interesses de seus usuários. Sem dúvida, mudanças substantivas na concepção da assistência social, um avanço que permite sua passagem do assistencialismo e de sua tradição de não política para o campo da política pública.
Como política de Estado, passa a ser um espaço para a defesa e atenção dos interesses e necessidades sociais dos segmentos mais empobrecidos da sociedade, configurando-se também como estratégia fundamental no combate à pobreza, à discriminação e à subalternidade econômica, cultural e política em que vive grande parte da população brasileira. Assim, cabem à assistência social ações de prevenção e provimento de um conjunto de garantias ou seguranças (Sposati, 1995). Essas garantias se efetivam pela construção do que Mishra denomina de "rede de segurança da rede de Segurança", ou seja, um conjunto de programas, projetos, serviços e benefícios voltados para a proteção social e para o atendimento de necessidades da população usuária dessa política.
Em geral caracterizada por sua heterogeneidade, essa rede de segurança (constituída pelos órgãos governamentais e por entidades da sociedade civil) opera serviços voltados ao atendimento de um vastíssimo conjunto de necessidades particularmente dos segmentos mais pobres da sociedade.
Dessa forma a assistência social como campo de efetivação de direitos emerge como política estratégica, não contributiva, voltada para o enfrentamento da pobreza e para à construção e o provimento de mínimos sociais de inclusão e para a universalização de direitos, buscando romper com a tradição clientelista e assistencialista que historicamente permeia a área onde sempre foi vista como prática secundária, em geral adstrita às atividades do plantão social, de atenções em emergências e distribuição de auxílios financeiros.
Cabe, no entanto, observar que se a Constituição Federal cria uma nova arquitetura institucional e ético/política para a proteção social brasileira, par­ticularmente para a política de assistência social, pois esta é também objeto de esvaziamentos e desqualificações em seu processo de implantação pós-constitucional no país, contexto em que ocorre a despolitização e a refilantropização do enfrentamento da questão social brasileira.
A busca da estabilização da economia e do equilíbrio orçamentário e fiscal a partir do Plano Real leva, no período dos governos de FHC (1995-98 e 1999-2002) a resultados pouco favoráveis para a proteção social na esfera pública estatal. O ambiente é de desacertos e tensões entre a adequação ao ambiente neoliberal e as reformas sociais exigidas constitucionalmente.
Conforme Fagnani (1999), a política econômica adotada não favoreceu o sucesso das políticas sociais. O autor cita como exemplo a política de emprego (insuficiente para reverter o quadro produzido pela política econômica) e o problema da Previdência Social (que viu sua base de financiamento erodir com o aumento da precarização e informalização da ocupação). No que se refere às políticas de saúde, educação e assistência social, Fagnani (1999, p. 166) aponta avanços no processo de descentralização, mas ressalta que "ao mesmo tempo em que estados e municípios são induzidos a aceitarem novas responsabilidades administrativas e financeiras na gestão das políticas sociais, a política econômica desorganiza as finanças destas instâncias [...]".
É importante assinalar que essas ações emergem no país em um contexto de profundas transformações societárias, que interferem na "questão social" e trazem na raiz dessas modificações a indagação sobre a compatibilidade (ou não) entre direitos, políticas sociais e as relações que se estabelecem entre Estado, sociedade e mercado nos novos marcos da acumulação capitalista. Contexto no qual a articulação: trabalho, direitos e proteção social pública sofre os impactos das transformações estruturais do capitalismo, que atingem duramente o trabalho assalariado e as relações de trabalho, levando à redefinição dos sistemas de proteção social e da política social em geral.
Apesar de eleger como prioridade absoluta o ajuste e a estabilidade econômica e dar pouca atenção à agenda social, a partir de 2001 o governo FHC tenta reverter esse quadro ao criar por meio, de um contrato com o BID, a "rede de proteção social". Esta "rede" introduziu no campo social de forma seletiva um conjunto de ações setoriais voltadas para os segmentos mais vulneráveis da população. Essas ações conjugavam serviços sociais e transferências monetárias, com destaque para a expansão do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil — Peti, criado em 1996, para o Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação — Bolsa-Escola, o Programa Bolsa Alimentação, o Agente Jovem e um pouco mais tarde o Auxílio Gás (2002).
Esse conjunto de programas federais, devido à sua abrangência e tamanho, permitiu o crescimento da relevância das propostas de transferências monetárias no âmbito da política social. Conforme estudo de Silva, Yazbek e Giovanni (2011), com a ampliação dos programas federais, os programas de iniciativa municipal e estadual aos poucos vão sofrendo alterações seguintes aspectos:
[...] desativação de programas já em implementação, principalmente em municípios que apresentam menores orçamentos. Nesses municípios, os programas vêm sendo substituídos pelo programa federal, bem como parece vir ocorrendo uma desaceleração de iniciativas para criação de novos programas, tanto por parte de Estados como de municípios, considerando que já implantaram programas similares federais; existência paralela de programas municipais, estaduais e federais, adotando benefícios com valores diferenciados; articulação do programa Bolsa-Escola federal com similares municipais, mais especificamente, no caso de municípios que têm orçamentos mais elevados, como São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, com complementação do valor do benefício dos programas federais com recursos do município, entre outros. (Silva, Yazbek e Giovanni, 2011, p. 157)
Com o governo Lula (2003-06) a questão social, e particularmente o enfrentamento da pobreza, passa a ser alvo de novas abordagens. O combate à fome e à miséria, expresso no início do primeiro governo Lula pelo emblemático Programa Fome Zero, cujo "Cartão Alimentação" teve seu lançamento simbólico no dia 3 de fevereiro de 2003 nos municípios de Acauã e Guaribas no Piauí, com a distribuição de cartões para quinhentas famílias.
Ainda em 2003 o "Cartão Alimentação" foi unificado ao Programa Bolsa Família, o que significou um importante passo na busca de articulação do sistema protetivo no país. O Programa Bolsa Família (20/10/2003) resultou da unificação de quatro programas federais: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale Gás e Cartão Alimentação. Apresentou como objetivos:
a)  Combater a fome, a pobreza e as desigualdades por meio da transferência de um benefício financeiro associado à garantia do acesso aos direitos sociais básicos — saúde, educação, assistência social e segurança alimentar.
b)  Promover a inclusão social, contribuindo para a emancipação das famílias beneficiárias, construindo meios e condições para que elas possam sair da situação de vulnerabilidade em que se encontram (Brasil/MDS, 2006).
Assim sendo, a unificação dos programas de transferência de renda situa-se no âmbito da prioridade de combate à fome e à pobreza, representando uma perspectiva de articulação entre níveis de governo e de políticas sociais.
Da mesma forma, a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em 2004 que unificou a política de combate à fome com as políticas de transferência de renda e de assistência social, foi um passo significativo na direção de articular um conjunto de iniciativas na perspectiva do enfrentamento à pobreza no país.




Maria Carmelita Yazbek

Mestrado e doutorado em Serviço Social, docente e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil; pesquisadora 1A do CNPq.
 

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