quarta-feira, 10 de julho de 2013

Porque o Serviço Social não seria trabalho?

Lessa afirma que este debate surgiu nas discussões acerca da formulação das novas diretrizes curriculares dos cursos de graduação, representando um avanço teórico para a categoria profissional, um amadurecimento e uma mudança na relação desta com as Ciências Humanas. O Serviço Social teria desta forma saído da relação de subalternidade histórica travada com as Ciências Humanas. (LESSA, 2000, P. 37)
A reflexão acerca do Serviço Social e a categoria trabalho não deve restringir-se, segundo o autor, ao aspecto instrumental, mas deve remeter-se, dentre outros aspectos, à análise dos fundamentos filosóficos e ideológicos presentes neste debate.
O autor alega fundamentar sua concepção de trabalho nas formulações de Karl Marx, para quem o trabalho é a categoria fundante do mundo dos homens, sendo a partir dele possível aos homens construírem a sua própria história. O trabalho constitui-se na categoria fundante em virtude de ser
[...] na relação com a totalidade social, [...] o local por excelência da produção das necessidades por novas relações sociais (categorias e complexos) que marcarão o desenvolvimento histórico do gênero humano." (LESSA, 2000, p. 49).
Desta maneira, o trabalho modifica também a própria natureza [social] do homem e conseqüentemente a sociedade. No final do processo de trabalho o homem já não é mais o mesmo, adquiriu "[...] novas habilidades e conhecimentos e, portanto, também [...] novas necessidades [...]." (LESSA, 2000, p. 51)
O trabalho tem uma função social particular e específica na relação com a totalidade social, que é de transformar a natureza em bens materiais necessários a reprodução social "[...] o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza [...]." (MARX apud LESSA, 2005, p. 2)
No modo de produção capitalista maduro, em que a grande industria já se desenvolveu e aparece como a premissa de toda produção, alterou-se também a base sobre a qual vinha se desenvolvendo até então a produção. Não se trata mais agora do trabalho executado pelo artesão ou mesmo pelo operário isolado, mas do trabalho realizado por um organismo criado pelo capital, o trabalhador coletivo.
O conceito desenvolvido acerca do trabalho coletivo por Lessa também tem por base o exposto por Marx,
[...] de um pessoal combinado de trabalho, cujos membros se encontram mais perto ou mais longe da manipulação do objeto de trabalho. Com o caráter cooperativo do próprio processo de trabalho amplia-se (erweiter sich), portanto, necessariamente o conceito de trabalho produtivo e de seu portador, do trabalhador produtivo. Para trabalhar produtivamente, já não é necessário, agora pôr pessoalmente a mão na obra; basta ser órgão do trabalhador coletivo, executando qualquer uma de suas subfunções. (MARX apud LESSA, 2005, p. 12).
Fica evidente nesta passagem a ampliação do conceito de trabalho. Agora não é o trabalhador considerado individualmente que realiza a transformação da natureza, mas o trabalhador coletivo, que no seu conjunto produz os meios materiais necessários à reprodução social.
Entretanto, Lessa chama a atenção para a presença de uma distinção dentro do trabalhador coletivo, segundo a qual nem todos realizam a transformação da natureza, sendo assim, nem todos fariam parte do trabalhador coletivo. Ou seja, só constituem o trabalhador coletivo, aqueles trabalhadores produtivos que transformam a natureza. (LESSA, 2005). Aponta ainda, uma diferença existente dentro do trabalhador coletivo, este englobaria tanto o trabalho - entendido aqui enquanto transformação da natureza - quanto outras atividades que somente produzem mais-valia, ou seja, que são improdutivas.
É importante salientarmos aqui, que Lessa admite haver produção de mais-valia oriunda de atividades que ele não considera trabalho.
Considerando [...] a produção de mais-valia, a relação entre o professor e o capitalista é exatamente a mesma que se desdobra entre o capitalista e o proletário. As forças de trabalho do professor e do proletário são compradas pelos seus respectivos valores, o tempo de trabalho socialmente necessário para reproduzir cada uma delas. [...] Ambas as forças de trabalho, portanto, foram compradas pelo seu valor de uso específico: é a única mercadoria que, uma vez consumida, gera maior valor que o seu próprio. A forma de exploração (se não a intensidade da exploração) é exatamente a mesma: a extração da mais-valia. Os lucros do dono da ‘fábrica de saber’e do dono da ‘fábrica de salsichas’ têm suas origens na mesma relação social, qual seja, a relação capital/trabalho produtivo. Tal como o proletário, portanto, o mestre-escola também produz mais-valia. [...] Enquanto o proletário trabalha sobre uma matéria da qual está ausente a consciência, a ação do professor visa primordialmente a consciência do aluno. [...] isto faz com que a própria práxis dos professores seja ontologicamente distinta da práxis proletária não apenas no seu conteúdo, não apenas na sua função social, mas até mesmo na sua forma imediata [...].(LESSA, 2005, p. 22).
Percebemos uma contradição no pensamento desse autor, já que admite a existência da produção da mais-valia por atividades assalariadas que no seu entendimento não são trabalho, justificando esta afirmação exatamente na origem da mais-valia, ou seja, uma teria sido produzida, enquanto a outra só valorizou capital, não acrescentando nenhum valor à riqueza social.
Há, portanto, duas conseqüências possíveis da geração da mais-valia. Quando a mais-valia é produzida pela conversão da natureza no ‘conteúdo material da riqueza’, a riqueza social total é acrescida pelo tempo de trabalho que o proletário plasmou na nova mercadoria. Todavia, quando a mais-valia é produzida fora da relação com a natureza, o que temos é um processo em que um dado montante de riqueza social já produzida pelo proletário, [...] é transferido para o dono da escola, em seguida, parte é transferido ao professor sob a forma de salário. (LESSA, 2005, p. 22).
No nosso entendimento, o autor, ao fragmentar o trabalho coletivo - entre aqueles que manipulam a natureza e aqueles que não, distorce de forma decisiva o pensamento de Marx, segundo o qual o trabalhador não deve ser analisado individualmente quanto à transformação da natureza, mas sim na coletividade. Ou seja,
A determinação original [...] de trabalho produtivo, derivada da própria natureza da produção material, permanece sempre verdadeira para o trabalhador coletivo, considerado como coletividade. Mas ela já não é válida para cada um de seus membros, tomados isoladamente. (Marx, 1985c, p.105)
Mas o centro da posição de Lessa consiste na negação do Serviço Social ser trabalho. Para fundamentar a sua tese ele afirmará que como o trabalho é um processo exclusivo entre homem e a natureza, o objeto de trabalho só pode ser a própria natureza, em seu estado bruto, ou transformada em matéria-prima. E os meios de trabalho, são elementos da natureza que o homem emprega na transformação da natureza, são "[...] as propriedades mecânicas, físicas, químicas [...]." (MARX apud LESSA, 2005, p. 10) que o homem utiliza para converter a natureza nos meios de produção e de subsistência necessários à reprodução social.
Posto isso, o autor conclui que "[...] Portanto, nas relações entre os homens, não temos, para Marx, nem a presença de matéria-prima nem o emprego de 'meios de trabalho' [...]." (LESSA, 2005, p.10).
Por que o Serviço Social não é trabalho? Pergunta num subtítulo do seu artigo “Serviço Social e Trabalho: do que se trata?” e responde assim:
Em primeiro lugar, e antes de qualquer coisa, porque o Serviço Social não realiza a transformação da natureza nos bens materiais necessários à reprodução social. Não cumpre a função mediadora entre os homens e a natureza; pelo contrário, atua nas relações puramente sociais, nas relações entre os homens. (LESSA, 2000, pág. 52). [destaque nosso]
Embora nos seus escritos Lessa desenvolva outros raciocínios, vamos nos ater aqui na consideração deste argumento que consideramos ser o essencial.


Karina Dala Pola*
Evaristo Colmán *
*
Assistente Social/UEL 
** Assistente Social/PUC-SP, doutor em História pela UNESP e docente do Curso de Serviço Social da UEL 


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