Resenha crítica do livro: Terceiro Setor e Questão Social: Crítica ao padrão emergente de intervenção social. MONTAÑO, Carlos.
Nos
dias atuais é de suma importância a discussão do papel
desempenhado pelas Organizações Não-Governamentais
— ONGs—, Fundações, Associações etc., que compõem
o chamado “terceiro setor”.
Em
primeiro lugar, porque é necessário explicitar o que
vem a ser este setor, o que tem de diferente ou de
especial para ser designado desta forma. Ainda imperam
muitas imprecisões nas tentativas de definições do
termo. Em segundo lugar, porque essa é uma discussão
que não deve ficar apenas na seara dos defensores
do "terceiro setor", dentro e fora dos meios
acadêmicos, mas deve ser assumida como objeto de investigação
pelos intelectuais comprometidos com uma análise crítica.
A
denominação “terceiro setor” se explicaria, para diferenciá-lo
do Estado (Primeiro Setor) e do setor privado (Segundo
Setor). Ambos não estariam conseguindo responder às
demandas sociais: o primeiro, pela ineficiência; o
segundo, porque faz parte da sua natureza visar o
lucro.
Essa
lacuna seria assim ocupada por um “terceiro setor”
supostamente acima da sagacidade do setor privado
e da incompetência e ineficiência do Estado. É comum
na literatura sobre o tema classificá-lo como “sem
fins lucrativos”.
Nesta
linha de raciocínio, permanece sem questionamento
o fato das fundações empresariais, que financiam direta
ou indiretamente algumas ONGs, fazerem uma atuação
“direta” em uma determinada “comunidade”, geralmente
no mesmo espaço geográfico onde estão instaladas suas
fábricas; e, não se envergonharem de pagarem baixos
salários para os seus funcionários ou até mesmo em
demiti-los.
É
no enfoque diferenciado destas e outras questões que
está o mérito do livro de Carlos Montãno. Remando
contra a maré, Montaño vai aos poucos, de maneira
clara e objetiva, desmistificando o chamado “terceiro
setor”, colocando-o no lugar que de fato ocupa: dentro
da lógica de reestruturação do capital.
Sob
este ângulo, o “terceiro setor” perde o glamour.
Deixa de ser visto como querem seus defensores
e mentores: a forma encontrada pela “sociedade civil”
para preencher a lacuna deixada pelo Estado. Mesmo
porque, para estes, não é função do Estado — ou pelo
menos não apenas dele — o atendimento das áreas sociais.
Montãno
deixa claro a importância do papel ideológico que
o "terceiro setor" cumpre na implementação
das políticas neoliberais e a sua sintonia com o processo
de reestruturação do capital pós 70. Ou seja, flexibilização
das relações de trabalho, afastamento do Estado das
responsabilidades sociais e da regulação social entre
capital e trabalho. No entanto, o Estado, permanece
como instrumento de consolidação “hegemônica do capital
mediante seu papel central no processo de desregulação
e (contra) reforma estatal, na reestruturação produtiva,
na flexibilização produtiva e comercial, no financiamento
ao capital, particularmente financeiro” (2002:17).
O
“terceiro setor” que, aparentemente, pode parecer
um espaço de participação da sociedade, representa
a fragmentação das políticas sociais e, por conseguinte,
das lutas dos movimentos sociais. Neste sentido, como
vimos pela Reforma do Estado, levada a cabo por Bresser
Pereira, o “terceiro setor” é colocado num patamar
de “co-responsabilização” das questões públicas junto
ao Estado, propiciando a sua desresponsabilização
com o eufemismo de “publicização”.
Nas
palavras de Montãno, o que está por trás da chamada
“publicização” é
“por um lado, a diminuição dos custos da atividade social — não pela maior
eficiência destas entidades, mas pela verdadeira precarização,
focalização e localização destes serviços, pela perda
das suas dimensões de universalidade, de não-contratualidade
e de direito do cidadão — desonerando o capital. (...)
É neste terreno que se inserem as ‘organizações sociais’,
o ‘voluntariado’, enfim, o ‘terceiro setor’, como
fenômeno promovido pelos (e/ou funcional aos planos
dos) governos neoliberais, orientados para América
Latina no Consenso de Washington” (2002: 47-8).
O
livro apresenta-se com uma introdução, que tem status
de capítulo, dois capítulos e a conclusão — que na
minha concepção, poderia ter sido o terceiro capítulo.
Mas para além da questão da forma (estranha para esta
leitora), o livro ganha em conteúdo. No primeiro capítulo,
“Características do debate dominante sobre o (conceito)
‘terceiro setor’”, Montãno faz um apanhado geral sobre
a origem do termo, demonstrando, com muita acuidade,
sua “debilidade teórica” e a forma como foi apropriado
por parte dos intelectuais brasileiros que se propuseram
a teorizar um conjunto de idéias, opiniões, até ações
pontuais, que até para os seus adeptos, torna-se difícil
chegar a um consenso sobre o que seja o “terceiro
setor”.
Visitando teóricos de Tocqueville a Hayek, passando por Habermas e outros,
o que demonstra uma ampla pesquisa que explicita as
conexões teóricas que influenciaram a literatura corrente
do chamado “terceiro setor”, Carlos Montãno vai desmascarando
a verdadeira “intenção” dos adeptos do conclamado
“menos Estado e maior ‘sociedade civil’” (2002:87).
No segundo capítulo, “O Fenômeno (real) por trás do conceito (ideológico)
de ‘terceiro setor’”, o autor faz, com agudeza, uma
leitura que vai da legislação em vigor até ao que
realmente importa: a inserção deste setor no debate
político-ideológico, apresentando como ele realmente
foi gestado: um apêndice das políticas neoliberais.
O que é chamado “terceiro setor” refere-se “a um fenômeno real, ao mesmo
tempo inserido e produto da reestruturação do capital
(...) para a função social de resposta à ‘questão
social’, seguindo os valores da solidariedade local,
da auto-ajuda e o da ajuda mútua” (2002:186).
Em “A sociedade civil como arena de lutas no processo de transformação
social”, conclusão que bem poderia ser um terceiro
capítulo, Montãno faz uma reflexão sobre os movimentos
sociais e as ONGs. Deixa claro o lugar ocupado hoje
por elas e, mais especificamente, a sua funcionalidade
ao capital.
O autor toma o cuidado de separar as ONGs que buscam suas parcerias com
os movimentos sociais das que, pelas suas práticas,
procuram substituí-los. Remonta, historicamente, ao
seu surgimento nos anos 70 quando “assumiam um papel
articulador do lado dos movimentos sociais. Essas
ONGs mudam de lugar nos anos 90: passaram a ocupar
paulatinamente, o lugar dos movimentos sociais deslocando-os
de seu espaço de luta e da preferência na adesão popular”
(2002:271).
Montaño privilegia, metodologicamente, a pesquisa bibliográfica, e o faz
com muita atenção.Encontramos, no trabalho, uma vasta
fonte de pesquisa que vai, como já mencionamos, dos
defensores do “terceiro setor” aos teóricos que sustentam
a crítica feita pelo autor. Assim, mostrando erudição,
Montaño vai de Marx aos contemporâneos.
Ao privilegiar a pesquisa bibliográfica, o autor secundarizou as falas
dos “atores” do chamado “terceiro setor”. Talvez ficasse
mais claro ainda o que esconde (ou revela) o discurso
dos adeptos do “terceiro setor” ao declararem que
a atuação na comunidade é um ingrediente a mais na
“renhida batalha do mercado globalizado”. Portanto,
está inserido na lógica do capital e, sim, visa o
lucro! Este lucro, segundo as palavras de um dos seus
defensores, está vinculado a “responsabilidade social”
e, supostamente, uma “visão humanista”. Essas empresas
teriam a oportunidade de desenvolver os negócios e
de aumentar os lucros.
O que o autor, prontamente, pode argumentar que não era a pretensão deste
livro.
Enfim, uma leitura obrigatória para todos aqueles que querem compreender
a lógica da reestruturação do capital e a forma pela
qual as políticas neoliberais são implementadas na
sociedade brasileira e, ainda, como na prática, a
maioria das ONGs e o chamado “terceiro setor” sucumbem
à lógica do grande capital.
Por
JOANA COUTINHO
Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP e membro do Núcleo de Estudos Ideologias e Lutas Sociais –NEILS
Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP e membro do Núcleo de Estudos Ideologias e Lutas Sociais –NEILS
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