sábado, 11 de maio de 2013

Pobreza e "questão social": uma análise histórico-crítica

Uma análise crítica sobre a pobreza e sobre a "questão social" exige a superação das concepções anteriormente descritas e comentadas — diferentes concepções desenvolvidas no interior do pensamento liberal em contextos diferentes. Pretendemos fazer isto apresentando alguns fundamentos para uma caracterização histórico-crítica da pobreza e da "questão social" na sociedade capitalista.
Mas por que pensar a pobreza na sociedade capitalista, se em toda sociedade de classes sempre houve pobreza e desigualdade? Será que este fenômeno, quase sempre presente nas diversas organizações sociais ao longo da história, apresenta alguma característica central no modo de produção capitalista (MPC), diferente de outros sistemas sociais? Será que o capitalismo gera uma pobreza que se funda em bases diferentes de outras sociedades?
Numa sociedade de escassez ou carências (não de abundância), onde a produção é insuficiente para satisfazer as necessidades de toda a população, a distribuição equitativa dos bens existentes faria com que toda a produção fosse consumida sem sobrar um excedente para promover o desenvolvimento das forças produtivas. A sociedade não cresceria produtivamente. Nas sociedades de escassez, portanto, a desigualdade de classes (a desigual distribuição da riqueza socialmente existente) é que permitiria o acúmulo de riqueza por parte de alguns e o empobrecimento por parte de outros, permitindo que o excedente acumulado nas mãos de uns possa ser investido no crescimento produtivo. A desigualdade, em contexto de escassez, é vista pelos liberais como necessária ao crescimento e ao desenvolvimento das forças produtivas. Contrariamente, em sociedades de abundância, onde a produção é suficiente para abastecer toda a população, como é a sociedade capitalista na era dos monopólios, a desigualdade social é produto do próprio desenvolvimento das forças produtivas, e não o resultado do seu insuficiente desenvolvimento, nem a condição para o mesmo. Aqui a desigualdade é consequência do processo que, mesmo em abundância de mercadorias, articula acumulação e empobrecimento.
Assim, em sociedades pré-capitalistas a pobreza é o resultado (para além da desigualdade na distribuição da riqueza) do insuficiente desenvolvimento da produção de bens de consumo, ou seja, da escassez de produtos (ver Netto, 2001, p. 46). Contrariamente, no modo de produção capitalista a pobreza (pauperização absoluta ou relativa, conforme caracteriza Marx, 1980, I, p. 747 e 717) é o resultado da acumulação privada de capital, mediante a exploração (da mais-valia), na relação entre capital e trabalho, entre donos dos meios de produção e donos de mera força de trabalho, exploradores e explorados, produtores diretos de riqueza e usurpadores do trabalho alheio. No MPC não é o precário desenvolvimento, mas o próprio desenvolvimento que gera desigualdade e pobreza. No capitalismo, quanto mais se desenvolvem as forças produtivas, maior acumulação ampliada de capital e maior pobreza (absoluta ou relativa) (cf. Marx, 1980, I, p. 712 e ss.). Quanto mais riqueza produz o trabalhador, maior é a exploração, mais riqueza é expropriada (do trabalhador) e apropriada (pelo capital). Assim, não é a escassez que gera a pobreza, mas a abundância (concentrada a riqueza em poucas mãos) que gera desigualdade e pauperização absoluta e relativa.
Conforme aponta Marx em O capital, "quanto maior a potência de acumu­lar riqueza, maior a magnitude do exército industrial de reserva. E quanto maior esse exército industrial de reserva em relação ao exército ativo, tanto maior a massa da superpopulação. E quanto maior essa massa (de Lázaros da classe trabalhadora) tanto maior o pauperismo" (Marx, 1980, I, p. 747).
Ou seja, quando maior desenvolvimento, maior acumulação privada de capital. O desenvolvimento no capitalismo não promove maior distribuição de riqueza, mas maior concentração de capital, portanto, maior empobrecimento (absoluto e relativo), isto é, maior desigualdade.
A partir dessa constatação, uma caracterização histórico-crítica da pobreza e da "questão social" deve considerar os seguintes aspectos:
a)  "questão social", como fenômeno próprio do MPC, constitui-se da relação capital-trabalho a partir do processo produtivo, suas contradições de interesses e suas formas de enfrentamento e lutas de classes. Expressa a relação entre as classes (e seu antagonismo de interesses) conformadas a partir do lugar que ocupam e o papel que desempenham os sujeitos no processo produtivo (cf. Montaño e Duriguetto, 2010, p. 82-98);
b)  a pobreza no MPC, enquanto expressão da "questão social", é uma manifestação da relação de exploração entre capital e trabalho, tendo sua gênese nas relações de produção capitalista, onde se gestam as classes e seus interesses. Como afirmamos, se o pauperismo e a pobreza, em sociedades pré-capitalistas, é resultado da escassez de produtos, na sociedade comandada pelo capital elas são o resultado da acumulação privada de capital. No MPC, não é o precário desenvolvimento social e econômico que leva à pauperização de amplos setores sociais, mas o próprio desenvolvimento (das forças produtivas) é o responsável pelo empobrecimento (absoluto ou relativo) de segmentos da sociedade. Não é, portanto, um problema de distribuição no mercado, mas tem sua gênese na produção (no lugar que ocupam os sujeitos no processo produtivo);
c)  desta forma todo enfrentamento da pobreza direcionado ao fornecimento de bens e serviços é meramente paliativo. Toda proposta de desenvolvimento econômico como forma de combater a pobreza (sem enfrentar a acumulação de riqueza, sem questionar a propriedade privada) não faz outra coisa senão ampliar a pauperização (absoluta e/ou relativa). Toda medida de "combate à pobreza" no capitalismo não faz mais do que reproduzi-la, desde que amplia a acumulação de capital. Quanto mais desenvolvimento das forças produtivas, maior a desigualdade e o pauperismo.
d)  no entanto, no contexto da ordem do capital, o fornecimento de bens e serviços constitui, em parte, o resultado de demandas e lutas de classes sociais, caracterizando-se assim um processo contraditório entre a sua funcionalidade com a hegemonia e a acumulação capitalista (produtivo-comercial), e a representação de conquistas e direitos dos trabalhadores e cidadãos;
e)  portanto, não há novidade (a não ser nas formas e dimensões que assume) na "questão social" na atualidade. As análises que tratam de uma suposta "nova questão social", de uma "nova pobreza", dos "novos excluídos sociais", constituem abordagens que se sustentam na desvinculação da "questão social" e de suas manifestações (pobreza, carências, subalternidade cultural etc.) dos seus verdadeiros fundamentos: a exploração do trabalho pelo capital. E estes fundamentos permanecem (e permanecerão enquanto a ordem capitalista estiver de pé) inalterados;
f)  só as lutas de classes, e a mudança na correlação de forças sociais, poderão reverter esse processo histórico, confirmando e ampliando conquistas e direitos trabalhistas, políticos e sociais, e superando a ordem do capital.



Carlos Montaño
Doutor em Serviço Social e professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Autor dos livros: Microempresa na era da globalização (Cortez, 1999); Terceiro setor e questão social (Cortez, 2002); A natureza do Serviço Social (Cortez, 2007) e Estado, classe e movimento social (Cortez, 2010, em coautoria). É coordenador da Biblioteca Latino-Americana de Serviço Social (Cortez). Foi membro da Direção Executiva da Alaeits (2006-09) e atualmente é coordenador nacional de relações internacionais da Abepss (gestões 2009-10 e 2011-12). Realizou pós-doutoramento (pela Capes) no Instituto Superior Miguel Torga (Coimbra, Portugal) entre 2009 e 2010.

Revista Serv. Soc. Soc.  no.110 São Paulo Apr./June 2012
Artigo:  Pobreza, "questão social" e seu enfrentamento 

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