A leitura desse texto é um novo olhar sobre a indagação acima, pelo menos para mim. Ednéia dialoga com autores e expõe outra forma de enxergar o porquê a questão social não é objeto do Serviço Social, se distanciando da discussão que envolve o conceito ontológico de trabalho e seu objeto (matéria prima transformada) que tanto ouvimos falar nas aulas da disciplina de trabalho e sociabilidade. É uma excelente leitura. Considero importante a busca por diferentes olhares sobre determinados assuntos, pois então, aí está!
Boa leitura a todos.
Priscila Morais
RESUMO
A questão social tem sido colocada, na nova
proposta de reformulação curricular, como objeto do Serviço Social. Resgatar a
concepção de questão social como forma de refletirmos sobre a possibilidade de
a questão social, ou, as expressões da questão social, se constituir em nosso
objeto profissional, é o objetivo deste artigo.
Palavras-chaves: serviço social, objeto, questão
social
Ter como objeto de análise o objeto do Serviço
Social é sempre um desafio. O Serviço Social é uma profissão legitimada socialmente,
isto significa que ele tem uma função social. As profissões são criadas para
responderem às necessidades dos homens. O desenvolvimento das forças produtivas
colocam as necessidades de novas profissões, assim como considera outras
desnecessárias. Mas, mesmo respondendo a uma necessidade social, o que pode ser
corroborado pelo número de assistentes sociais inseridos no mercado de
trabalho; pelo fato de que eles, efetivamente, trabalham desenvolvendo ações
que tem um produto, produto social com dimensões econômicas e políticas; ainda
assim, o Serviço Social mantém, historicamente, o dilema da especificidade
profissional. Especificidade, esta, que é dada pelo objeto profissional. Em
termos bastante simples, a questão é: sobre o que trabalha o Serviço Social? A
resposta a esta questão responde, também, com qual objetivo trabalha o Serviço
Social.
O objeto do Serviço Social, neste sentido, está,
intimamente, vinculado a uma visão de homem e mundo; fundamentado numa
perspectiva teórica que, no modo capitalista de produção, implica em uma opção
política – a teoria norteadora da ação, a ação que re-constrói a teoria,
demonstram de que lado está o Serviço Social. E, desde o Movimento de
Reconceituação, o Serviço Social tem construído uma ação voltada para a maioria
da população. Mas esta não foi sempre sua história.
O Objeto: da incapacidade individual às
determinações estruturais
Em 62 anos, 1937 a 1999, o Serviço Social
realizou uma transformação no interior da profissão. Começou creditando aos
homens a “culpa” pelas situações que vivenciavam, e acreditando que uma prática
doutrinária, fundamentada nos princípios cristãos, era a chave para a
“recuperação da sociedade”. Chega, em 1999, assumindo uma postura marxiana,
analisando que a forma de produção social é a causa prioritária das
desigualdades – os homens, individualmente, não são desiguais, a forma de
produção e apropriação do produto social é que produz as desigualdades, modo de
produção este que deve ser reproduzido, para manter a dominação de classe. É um
salto elogiável para uma profissão que começou querendo moldar os homens de
acordo com os princípios cristãos de respeito à autoridade, e, hoje, tem, nos
homens, a autoridade máxima a ser respeitada; uma profissão que tinha nos
homens o objeto do seu trabalho, e, hoje, entende que os homens são sujeitos da
história.
O objeto do Serviço Social, no Brasil, tem,
historicamente, sido delimitado em virtude das conjunturas políticas e
sócio-econômicas do país, sempre tendo-se em vista as perspectivas teóricas e
ideológicas orientadoras da intervenção profissional.
Assim, é que, no início do Serviço Social no
Brasil, 1937, o objeto definido era o homem, mas um homem específico: o homem
morador de favelas, pobre, analfabeto, desempregado, etc. Enfim, entendia-se
que esse homem era incapaz, por sua própria natureza, de “ascender”
socialmente. Daí que o objeto do Serviço Social era este homem, tendo por
objetivo moldá-lo, integrá-lo, aos valores, moral e costumes defendidos pela
filosofia neotomista.
Posteriormente, o Serviço Social ultrapassa a ideia
do homem como objeto profissional. Passa-se à compreensão de que a situação
deste homem – analfabeto, pobre, desempregado, etc. – é fruto, não só de uma
incapacidade individual, mas, também, de um conjunto de situações que merecem a
intervenção profissional. O objeto do Serviço Social se coloca, então, como a
situação social problema:
“... o Serviço Social atua na base das
inter-relações do binômio indivíduo-sociedade. [...] Como prática
institucionalizada, o Serviço Social se caracteriza pela atuação junto a
indivíduos com desajustamentos familiares e sociais. Tais desajustamentos
muitas vezes decorrem de estruturas sociais inadequadas” (Documento de Araxá,
1965, p.11).
Na década de 70, com a mobilização popular
contra a ditadura militar, o Serviço Social revê seu objeto, e o define como a
transformação social. Apesar do objeto equivocado, afinal a transformação
social não se constitui em tarefa de nenhum profissional – é uma função de
partidos políticos; o que este objeto, efetivamente, representou foi a busca,
pelas assistentes sociais, de um vínculo orgânico com as classes
subalternizadas e exploradas pelo capital. E é esta postura política que tem
marcado os debates do Serviço Social até os dias atuais. Teoricamente, o
Serviço Social passa a orientar-se pela análise marxiana da sociedade burguesa,
mas abandonou a transformação social como objeto profissional e, no âmbito da
ABESS/CEDEPSS o objeto passou a ser
definido como a questão social, ou as expressões da questão social:
“O assistente social convive cotidianamente com
as mais amplas expressões da questão social, matéria prima de seu trabalho.
Confronta-se com as manifestações mais dramáticas dos processos da questão
social no nível dos indivíduos sociais, seja em sua vida individual ou
coletiva” (ABESS/CEDEPSS, 1996, p. 154-5).
O que é questão social?
A concepção de questão social está enraizada na
contradição capital x trabalho, em outros termos, é uma categoria que tem sua
especificidade definida no âmbito do modo capitalista de produção.
A concepção de questão social mais difundida no
Serviço Social é a de CARVALHO e IAMAMOTO, (1983, p.77):
“A questão social não é senão as expressões do
processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no
cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por
parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida
social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a
exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão”.
Não contraditória à esta concepção, temos a de
TELES, (1996, p. 85):
“... a questão social é a aporia das sociedades
modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do
mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os
imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade
e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de
poder e dominação”.
Portanto, a questão social é uma categoria que
expressa a contradição fundamental do modo capitalista de produção.
Contradição, esta, fundada na produção e apropriação da riqueza gerada
socialmente: os trabalhadores produzem a riqueza, os capitalistas se apropriam
dela. É assim que o trabalhador não usufrui das riquezas por ele produzidas.
A questão social representa uma perspectiva de
análise da sociedade. Isto porque não há consenso de pensamento no fundamento
básico que constitui a questão social. Em outros termos, nem todos analisam que
existe uma contradição entre capital e trabalho. Ao utilizarmos, na análise da
sociedade, a categoria questão social, estamos realizando uma análise na perspectiva
da situação em que se encontra a maioria da população – aquela que só tem na
venda de sua força de trabalho os meios para garantir sua sobrevivência. É
ressaltar as diferenças entre trabalhadores e capitalistas, no acesso a
direitos, nas condições de vida; é analisar as desigualdades e buscar forma de
superá-las. É entender as causas das desigualdades, e o que essas desigualdades
produzem, na sociedade e na subjetividade dos homens.
E as consequências da apropriação desigual do
produto social são as mais diversas: analfabetismo, violência, desemprego,
favelização, fome, analfabetismo político, etc.; criando “profissões” que são
frutos da miséria produzida pelo capital: catadores de papel; limpadores de
vidro em semáforos; “avião” – vendedores de drogas; minhoqueiros – vendedores
de minhocas para pescadores; jovens faroleiros – entregam propagandas nos
semáforos; crianças provedoras da casa – cuidando de carros ou pedindo esmolas,
as crianças mantém uma irrisória renda familiar; pessoas que “alugam” bebês
para pedir esmolas; sacoleiros – vivem da venda de mercadorias contrabandeadas;
vendedores ambulantes de frutas; etc. Além de criar uma imensa massa
populacional que frequenta igrejas, as mais diversas, na tentativa de sair da
miserabilidade em que se encontram.
Como toda categoria arrancada do real, nós não
vemos a questão social, vemos suas expressões: o desemprego, o analfabetismo, a
fome, a favela, a falta de leitos em hospitais, a violência, a inadimplência,
etc. Assim é que, a questão social só se nos apresenta nas suas objetivações,
em concretos que sintetizam as determinações prioritárias do capital sobre o
trabalho, onde o objetivo é acumular capital e não garantir condições de vida
para toda a população.
Neste terreno contraditório entre a lógica do
capital e a lógica do trabalho, a questão social representa não só as
desigualdades, mas, também, o processo de resistência e luta dos trabalhadores.
Por isto ela é uma categoria que reflete a luta dos trabalhadores, da população
excluída e subalternizada, na luta pelos seus direitos econômicos, sociais,
políticos, culturais. E é aí, também, que reside as transformações históricas
da concepção de questão social. O avanço das organizações dos trabalhadores e
das populações subalternizadas coloca em novos patamares a concepção de questão
social. Se, no período ditatorial brasileiro pós-64 a luta prioritária era
romper com a dominação política, hoje a luta é pela consolidação da democracia
e pelos direitos de cidadania. As transformações no mundo do trabalho, seja com
a substituição do homem pela máquina, seja pela erosão dos direitos
trabalhistas e previdenciários, exigem, também, que se reatualize a concepção
de questão social.
Importa ressaltar que a questão social é uma
categoria explicativa da totalidade social, da forma como os homens vivenciam a
contradição capital – trabalho. Ela desvenda as desigualdades sociais,
políticas, econômicas, culturais, bem como coloca a luta pelos direitos da
maioria da população, ou, como os homens resistem à subalternização, à
exclusão, e à dominação política e econômica.
Considerando a concepção de questão social aqui,
minimamente, debatida, resta-nos perguntar se é possível que ela se constitua
em objeto do Serviço Social.
Questão Social : Objeto do Serviço Social?
IAMAMOTO, (1997, p. 14), define o objeto do
Serviço Social nos seguintes termos:
“Os assistentes sociais trabalham com a questão
social nas suas mais variadas expressões quotidianas, tais como os indivíduos
as experimentam no trabalho, na família, na área habitacional, na saúde, na
assistência social pública, etc. Questão social que sendo desigualdade é também
rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela
resistem, se opõem. É nesta tensão entre produção da desigualdade e produção da
rebeldia e da resistência, que trabalham os assistentes sociais, situados nesse
terreno movido por interesses sociais distintos, aos quais não é possível
abstrair ou deles fugir porque tecem a vida em sociedade. [...] ... a questão
social, cujas múltiplas expressões são o objeto do trabalho cotidiano do
assistente social”.
É indiscutível a inserção da intervenção do
Serviço Social no âmbito das desigualdades sociais, ou, mais amplamente, da
questão social. Entretanto, considerando a concepção de questão social, é de se
perguntar se a mesma, ou suas expressões, podem se constituir em objeto de uma
única profissão. Estamos partindo da concepção de que o objeto é o que
demonstra, coloca, a especificidade profissional. Ora, entender a questão
social como objeto específico do Serviço Social, das duas uma: ou se destitui a
questão social de toda a abrangência conceitual, ou se retoma a uma visão do
Serviço Social como o único capaz de atuar nas mudanças/transformações da
sociedade.
Se pensarmos na abrangência da concepção de
questão social, concluiremos que as mais diversas profissões têm suas atuações
determinadas por ela: o médico que atende problemas de saúde causados por fome,
insegurança, acidentes de trabalho, etc.; o engenheiro que projeta habitações a
baixo custo; o advogado que atende as pessoas sem recursos para defender seus
direitos; enfim, os mais diferentes profissionais que, também, atuam nas expressões da questão social.
Há, ainda, uma outra reflexão possível: em sendo
a questão social uma categoria que explicita, expressa, as desigualdades
geradas pelo modo de produção capitalista, ela se colocaria, também, como
objeto de todos aqueles que apostam no capitalismo como a forma perfeita de
produção da vida social. Assim, ela, também, se expressaria nas políticas
econômicas, sociais, culturais, traçadas em âmbito governamental, para manter
as classes que vivem do trabalho subordinadas e dominadas. Ou seja, se a
manifestação da desigualdade, a luta pelos direitos sociais e de cidadania, são
uma expressão da questão social, não interessa as classes detentoras dos
poderes políticos e econômicos que haja um acirramento da contradição,
viabilizando, desta forma, espaços de organização da população. Neste sentido,
a contradição capital – trabalho também é um objeto dos que buscam, na
manutenção do capitalismo, a garantia de privilégios econômicos e políticos.
Segundo FALEIROS, (1997, P. 37):
“... a expressão questão social é tomada de
forma muito genérica, embora seja usada para definir uma particularidade profissional.
Se for entendida como sendo as contradições do processo de acumulação
capitalista, seria, por sua vez, contraditório colocá-la como objeto particular
de uma profissão determinada, já que se refere a relações impossíveis de serem
tratadas profissionalmente, através de estratégias institucionais/relacionais
próprias do próprio desenvolvimento das práticas do Serviço Social. Se forem as
manifestações dessas contradições o objeto profissional, é preciso também
qualificá-las para não colocar em pauta toda a heterogeneidade de situações
que, segundo Netto, caracteriza, justamente, o Serviço Social”.
Portanto, definir como objeto profissional a
questão social, não estabelece a especificidade profissional. Podemos entender
na sugestão de FALEIROS, que qualificar a questão social significa apreender o
que compete ao Serviço Social no âmbito da questão social. Se falarmos, por
exemplo, nas expressões sociais da questão social, estaremos, minimamente,
definindo um espaço de atuação profissional.
Há que se ressaltar que, para FALEIROS,
entretanto, o objeto do Serviço Social se define pelo empowerment:
“A questão do objeto profissional deve ser
inserida num quadro teórico-prático, não pode ser entendida de forma isolada.
Penso que no contexto do paradigma da correlação de forças o objeto
profissional do serviço social se define como empoderamento, fortalecimento,
empowerment do sujeito , individual ou coletivo, na sua relação de cidadania
(civil, política, social ,incluindo políticas sociais), de identificação (
contra as opressões e discriminações), e de autonomia ( sobrevivência, vida
social, condições de trabalho e vida...)” (fonte: correspondência pessoal,
15/10/1999)
Não estamos defendendo, aqui, a opção por um ou
outro objeto. O fundamental é repensarmos como o objeto de Serviço Social tem
sido colocado, e como poderemos revê-lo para darmos objetividade à atuação
profissional.
Entendemos que, a cada situação, temos que reconstruir
o objeto profissional. Entretanto, ele tem determinações mais amplas, e essa reconstrução
tem por finalidade, apenas, garantir, no processo de intervenção, as
particularidades de cada situação, inserida no contexto específico de onde
atuamos.
Ednéia Maria Machado
Assistente Social, professora do
Departamento de Serviço Social da UEL, doutora em Serviço Social.