TÍTULO ORIGINAL: MARX, MARXISMO E SERVIÇO SOCIAL
POR MARIA AUGUSTA TAVARES
TAVARES, Maria Augusta. Marx, Marxismo e Serviço Social. João Pessoa, 2013.
Trazer ao
debate os "marxismos" no Serviço Social significa enfrentar
deformações, distorções, extravios, derivações, revisões e reducionismos
sofridos pelo pensamento de Marx no curto período em que esse diálogo
foi incorporado aos conteúdos da formação profissional do assistente
social. Contudo, iniciar destacando tais consequências não implica
ignorar o enriquecimento que a assimilação desse pensamento tem
possibilitado ao Serviço Social. Não seria exagero dizer que, graças a
essa opção teórico-metodológica, a empreitada de se opor à hegemonia das
classes dominantes, na academia, tornou-se quase unicamente do Serviço
Social, tanto que o curso é, hoje, o refúgio de filósofos, economistas,
educadores e de outros profissionais que querem uma ruptura radical com o
legado positivista.
Reconhecer,
aqui e agora, a qualidade dos grandes intelectuais marxistas vinculados
ao Serviço Social, cuja produção intrinsecamente crítica tornou-se
referência nas Ciências Sociais, seria uma tarefa fácil. Porém, a menção
ao marxismo no plural - marxismos - não deixa dúvida sobre o propósito
do convite feito pela Revista Katálysis. Cabe a mim, portanto, na
perspectiva do "conhecimento totalizante" (WOOD; FOSTER, 1999), a
difícil tarefa de sintetizar o que importantes pesquisadores já
demonstraram ao se debruçarem sobre este mesmo tema. Nesse sentido,
antes de enveredar na especificidade, recorro a Netto (1989), cuja
contribuição é fundamental para que se compreendam os desdobramentos da
aproximação do Serviço Social à tradição marxista. Há, segundo Netto, um
"antagonismo genético" entre o pensamento de Marx e o Serviço Social,
mas, ao mesmo tempo, os "quadros macroscópicos inclusivos e abrangentes
da sociedade burguesa" lhes constituem um piso comum, sendo ambos
"impensáveis fora do âmbito da sociedade burguesa". Sob perspectivas
diferentes, tanto o Serviço Social quanto o marxismo têm a "questão
social" como substrato. Mas, enquanto o Serviço Social "surge
vocacionado para subsidiar a administração da 'questão social' nos
quadros da sociedade burguesa", a questão social é, para Marx, "um
complexo absolutamente indivorciável do capitalismo". Assim, essa
relação diversa com um mesmo substrato tem um "papel pouco
significativo, se comparado com o que os distingue". Com isso, o autor
não exclui possibilidades de interlocução entre o Serviço Social e o
pensamento de Marx, mas demonstra, através do movimento que os
incompatibiliza, implicações que "desenham um cenário de excludência" no
plano teórico. Sobretudo ao se levar em conta que a "profissão se
institucionaliza e se afirma nutrindo-se de um conjunto de saberes
ancorados numa vertente teórica (a do pensamento conservador) antagônica
à marxista."
O
diálogo entre setores do Serviço Social e a tradição marxista inicia-se
na década de 1960, no interior de um movimento social que não é
exclusivo ao Brasil, tampouco à profissão. À época, além da pressão dos
movimentos revolucionários e da rebelião estudantil, especialmente na
França (1968), a universidade brasileira não escapa, também, às
influências internas do golpe militar de 1964. É nesse contexto que
emerge a Reconceitualização do Serviço Social na América Latina -
processo que questiona o significado da ação profissional e, por
conseguinte, introduz o marxismo nos conteúdos da formação profissional -
com repercussões e derivações do pensamento de Marx que se colocam na
agenda profissional até hoje. Materializado na disciplina Metodologia do
Serviço Social, esse conteúdo foi formalmente inserido na formação
profissional, em 1982, num ambiente marcado por lutas internas, que
opunham pensamento conservador e pensamento crítico. Evidentemente, a
opção pela nova perspectiva carecia de aproximação às fontes marxianas e
aos clássicos da tradição marxista, mas não é o que a realidade
comprova. Ao contrário, a pesquisa de Quiroga (2000, p. 138) demonstra
que havia, e ainda há, diferentes compreensões do marxismo. Nas
derivações apontadas, Quiroga distingue:
[...] um Marx que agiganta a determinação do fator econômico como elemento único, gerador do desenvolvimento da sociedade; um Marx que supervaloriza o papel das classes, de sua luta, do significado do sujeito construindo sua história, desvinculado da base material que o sustenta; um Marx que é 'metodológico' na própria acepção positivista, ou seja, que se reduz ao método; um Marx atrofiado à sua dimensão de cientista social 'investigador' da sociedade, desligado de sua convicção da necessidade de transformação desta.
A
aproximação do Serviço Social à tradição marxista realizou-se "sob
exigências teóricas muito reduzidas - as requisições que a comandavam
foram de natureza sobretudo ideopolítica, donde um cariz fortemente
instrumental nessa interlocução" (NETTO, 1989, p. 97). Quiroga esclarece
que a maioria dos docentes por ela entrevistados não teve acesso aos
textos originais de Marx, sendo a formação deles liderada pelo
pensamento de Althusser, cuja reflexão epistemológica atribui primazia
ao sujeito no processo científico. Em O estruturalismo e a miséria da razão,
Coutinho (2010, p. 175-176) afirma que "Althusser e sua escola
pretendem apresentar o estruturalismo (ou a sua versão particular dele)
como o resultado de uma 'leitura' correta de Marx". E retruca: "sob o
pretexto de 'redescoberta' do verdadeiro Marx, pratica-se uma destruição
objetiva da essência da herança marxista e sua substituição, consciente
ou inconsciente, por uma filosofia burguesa da moda."
Não
diria que a opção do Serviço Social por Althusser tenha tido a
pretensão consciente ou inconsciente de uma "redescoberta" do verdadeiro
Marx, mesmo porque, como fora atestado, a maioria dos docentes nem lera
Marx. Entretanto, apesar da aproximação enviesada, o Serviço Social
assimilou elementos isolados do pensamento de Marx que respondem por uma
indignação hegemônica na profissão, distinguível da ideia de hegemonia
marxista. Esta é falsa e, a meu ver, explica o ecletismo.
À
semelhança de Netto (1989, p. 100-101), penso que há uma centralização
do debate que precisa ser enfrentada. Nas suas palavras:
[...] inclino-me a pensar que o debate está centralizado por profissionais vinculados à tradição marxista (ou a ela próximos) 'porque a efetiva diferenciação da categoria não está sendo explicitada'. Nesta eventualidade, a polêmica pode esvaziar-se, dado que distintos protagonistas, representantes de outras tendências, não se fazem ouvir - e a perda é coletiva, posto que não ocorra um confronto de ideias aberto, marxistas e não marxistas deixam de estimular-se reciprocamente no terreno privilegiado que é o do enfrentamento ideal.
Em
tese, todo assistente social é marxista. Onde reside a dificuldade de
serem assumidas as diferenças? A mim parece mais apropriado dizer que o
Serviço Social é a profissão que mais reúne seres humanos indignados,
mas isso não faz de todos marxistas. Ressaltaria que a formação desse
profissional, apesar dos enormes avanços, ainda não conseguiu acumular
os recursos intelectuais necessários para que essa indignação se
constitua na ponte que conecte todos os assistentes sociais ao
"conhecimento totalizante". Daí os muitos marxismos, os quais não
permitem aspirar a uma oposição unificada contra o capitalismo.
Além
dos vieses aludidos, é difícil ao Serviço Social, pelo seu caráter
interventivo, escapar ao ativismo, que tende a se subordinar a
ideologias positivistas. Analisando "a estreiteza estalinista", Coutinho
(2010, p. 180), demonstra como "inúmeros marxistas sinceros" combateram
a herança de Marx e colocaram no seu lugar "as mais passageiras 'modas'
do pensamento da decadência."
No
Brasil, sobretudo na era Lula, na qual a sutileza de iniciativas
contraditórias tece a "apologia do novo desenvolvimentismo" (MOTA,
2012), constitui o maior desafio para o Serviço Social analisar esse
momento histórico. Estariam os profissionais capacitados a essa análise
sem capitular ao irracionalismo? Ana Elizabete Mota, que conhece essa
matéria bem mais que eu, reafirma na profissão a condição de
protagonista de um projeto profissional calcado em valores, princípios e
diretrizes inerentes a um dado projeto societal: uma sociedade
emancipada e radicalmente humana. Nesse sentido, convém que se invista
permanentemente em uma formação fundada em Marx e na tradição marxista.
Findo aqui, não por haver terminado, mas pelos meus próprios limites e por falta de espaço. Com os sinceros agradecimentos à Revista Katálysis,
deixo os leitores com os artigos que compõem este número da revista e
com a tarefa de pensar que há uma sociedade a ser transformada.
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