sábado, 28 de setembro de 2013

Esquerda e direita

A indefinição ideológica dos nossos genes é apenas mais um numa longa lista de paradoxos que nos dividem.

  Por Luis Fernando Veríssimo

O DNA é de esquerda ou de direita? Ele fornece argumentos para todos. Prova que todos nascem com o mesmo sistema de códigos genéticos e, portanto, são iguais (ponto para a esquerda), mas que cada indivíduo tem uma senha diferente (ponto para a direita, se bem que não necessariamente para os racistas). Na velha questão biologia x cultura, o DNA dá razão a quem diz que características adquiridas não são hereditárias, nenhuma experiência cultural afeta os genes transmitidos e a humanidade não ficará mais virtuosa – muito menos socialista – com o tempo. Mas a própria descoberta do DNA e todas as projeções que se tornaram possíveis com a manipulação do material genético mostram como o ser humano pode, sim, interferir na sua própria evolução e como existe nele uma determinação inata para o aperfeiçoamento. Parafraseando Marx: os cientistas sempre se preocuparam em compreender o ser humano, agora devem tratar de mudá-lo. Biologia não é, afinal, destino. Ao mesmo tempo, a eugenia é uma ciência com má reputação. Seu apogeu anterior foi nos experimentos nazistas durante a guerra, e o significado de “aperfeiçoamento” é uma questão aberta. Uma pessoa “melhora” tornando-se mais preparada, pela aparência, a capacidade física e o espírito empreendedor, para as competições da vida ou mais tolerante com a variedade humana?

A indefinição ideológica dos nossos genes é apenas mais um numa longa lista de paradoxos que nos dividem. É “de esquerda” ser a favor do aborto e contra a pena de morte, enquanto direitistas defendem o direito do feto à vida, porque é sagrada, e ao mesmo tempo o direito do Estado de tirá-la, embora não gostem que o Estado interfira em outras áreas. A direita valoriza o indivíduo acima da sociedade, que seria uma abstração, mas aceita a desigualdade social, ou o sacrifício de muitos indivíduos pelo sucesso de poucos, como natural. A esquerda muitas vezes atribui a um Estado impessoal ou a um líder super personalizado a incongruente realização de um humanismo igualitário. Et cetera, et cetera. E, aparentemente, o DNA não vai nos dizer se estamos condenados a ser contraditórios de uma maneira ou de outra, para sempre. Era só o que nos faltava, o DNA ser do centrão.

Feliz é a mosca, que tem mais ou menos a nossa estrutura genética, mas absolutamente nenhum interesse nas suas implicações.


Fonte: Jornal “Zero Hora” nº 15390, 11/10/2007.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

"Sete anos de Maria da Penha"

No mês em que entrou em vigor a Lei Maria da Penha, setembro de 2006, o blog Serviço Social & cotidiano trás uma breve e informativa leitura da história da lei e daquela que deu o seu nome a esta Lei.

Boa leitura.


Priscila Morais


A Lei 11.340/06, conhecida com Lei Maria da Penha, ganhou este nome em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, que por vinte anos lutou para ver seu agressor preso.

Maria da Penha é biofarmacêutica cearense, e foi casada com o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros. Em 1983 ela sofreu a primeira tentativa de assassinato, quando levou um tiro nas costas enquanto dormia. Viveros foi encontrado na cozinha, grtitando por socorro, alegando que tinham sido atacados por assaltantes. Desta primeira tentativa, Maria da Penha saiu paraplégica A segunda tentativa de homicídio aconteceu meses depois, quando Viveros empurrou Maria da Penha da cadeira de rodas e tentou eletrocuta-la no chuveiro.

Apesar da investigação ter começado em junho do mesmo ano, a denúncia só foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro do ano seguinte e o primeiro julgamento só aconteceu 8 anos após os crimes. Em 1991, os advogados de Viveros conseguiram anular o julgamento. Já em 1996, Viveros foi julgado culpado e condenado há dez anos de reclusão mas conseguiu recorrer.

Mesmo após 15 anos de luta e pressões internacionais, a justiça brasileira ainda não havia dado decisão ao caso, nem justificativa para a demora. Com a ajuda de ONGs, Maria da Penha conseguiu enviar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), que, pela primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica. Viveiro só foi preso em 2002, para cumprir apenas dois anos de prisão.

O processo da OEA também condenou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência doméstica. Uma das punições foi a recomendações para que fosse criada uma legislação adequada a esse tipo de violência. E esta foi a sementinha para a criação da lei. Um conjunto de entidades então reuniu-se para definir um anti-projeto de lei definindo formas de violência doméstica e familiar contra as mulheres e estabelecendo mecanismos para prevenir e reduzir este tipo de violência, como também prestar assistência às vítimas.

Em setembro de 2006 a lei 11.340/06 finalmente entra em vigor, fazendo com que a violência contra a mulher deixe de ser tratada com um crime de menos potencial ofensivo. A lei também acaba com as penas pagas em cestas básicas ou multas, além de englobar, além da violência física e sexual, também a violência psicológica, a violência patrimonial e o assédio moral.
Fonte: Observatório Lei Maria da Penha
Endereço eletrônico:  http://www.observe.ufba.br/
 

domingo, 22 de setembro de 2013

Apontamentos sobre políticas públicas

Na língua portuguesa, segundo Secchi, o termo “política” pode assumir duas conotações principais, que as comunidades epistêminas de países de língua inglesa conseguem diferenciar usando os termos politics e policy.
Politics = política – É a atividade humana ligada a obtenção e manutenção dos recursos necessários para o exercício do poder sobre o homem. Política nesse sentido será compreendida como atividade e competição.
Policy = política, seria compreendida como orientação para uma ação. Este segundo sentido é considerado pelo autor o mais concreto no que se refere a política, ao qual o termo “política pública está ligado.
Políticas públicas - tratam do conteúdo concreto e do conteúdo simbólico de decisões políticas, e do processo de construção e atuação dessas decisões.
Segundo Secchi, uma política pública é uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público que o autor define como sendo (problema público: é a diferença entre a situação atual e a situação ideal possível). Para ele ainda, uma política pública possui dois elementos fundamentais: intencionalidade pública e resposta a um problema público. A razão para o estabelecimento de uma política pública é o tratamento ou resolução de um problema entendido como coletivamente relevante.
Autores e pesquisadores defendem duas abordagens no que se refere ao protagonismo no estabelecimento de políticas públicas: abordagem estadistas ou estadocêntrica que estabelece a política pública somente quando emanada do Estado. Uma razão especifica para essa vinculação direta de política pública ao Estado, no caso brasileiro, é a ligação da política com a tradição intervencionista do Estado brasileiro na história do pensamento político nacional.
A segunda abordagem é a multicêntrica ou policêntrica, que por outro lado, considera organizações provadas, organizações não governamentais, organismos multilaterais, redes de políticas públicas juntamente com os atores estatais, protagonistas no estabelecimento de políticas públicas. Autores de abordagem multicêntrica atribuem o adjetivo “público” a uma política, quando o problema que se tenta enfrentar é público no sentido de coletivo e não no sentido de pertencer ao Estado.
Segundo Secchi, em geral as políticas públicas são elaboradas dentro do aparato institucional e legal do Estado, embora as iniciativas e decisões tenham diversas origens.
Relacionadas a essa visão do autor sobre a abordagem multicêntrica, estão as teorias de governança pública, da coprodução do bem público e das redes de políticas públicas, em que o Estado e a sociedade se articulam em esquemas espontâneos e horizontais para a solução de problemas públicos.
A abordagem estatista admite que atores não estatais influenciem no processo de elaboração e implantação de poíticas públicas, mas não lhes confere o direito de decidir e liderar um processo de política pública. Já acadêmicos da vertente multicêntrica admitem tal competência a atores não estatais.
Do ponto de vista normativo, Secchi, compartilha da convicção que o Estado deve ter seu papel reforçado, especialmente para evitar problemas distributivos. No entanto, do ponto de vista analítico, o autor acredita que o Estado não é o único a protagonizar a elaboração de políticas públicas, porém destaca que não há dúvida que o Estado moderno se destaca em relação a outros atores no estabelecimento de políticas públicas. Para Secchi, a centralidade do Estado no estabelecimento de políticas públicas é consequência de fatores como, por exemplo, a elaboração de políticas públicas serem uma das razões centrais do nascimento e legitimidade do Estado.
Para o autor a essência conceitual de políticas públicas é o problema público. Exatamente isso o que define se uma política é ou não pública e a sua intenção de responder a um problema público, e não se o tomador de decisão tem personalidade jurídica, estatal ou não estatal. O autor coloca que, são os contornos da definição de um problema público que dão a política o adjetivo público.
 Priscila Morais


Referencia: SECCHI. Leonardo. Políticas públicas: conceitos, esquemas de analises e casos práticos. São Paulo: Congage Learning - 2º ed, 2013.




 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Questão Social: Objeto do Serviço Social?

A leitura desse texto é um novo olhar sobre a indagação acima, pelo menos para mim. Ednéia dialoga com autores e expõe outra forma de enxergar o porquê a questão social não é objeto do Serviço Social, se distanciando da discussão que envolve o conceito ontológico de trabalho e seu objeto (matéria prima transformada) que tanto ouvimos falar nas aulas da disciplina de trabalho e sociabilidade. É uma excelente leitura. Considero importante a busca por diferentes olhares sobre determinados assuntos, pois então, aí está!

Boa leitura a todos.



Priscila Morais


RESUMO


A questão social tem sido colocada, na nova proposta de reformulação curricular, como objeto do Serviço Social. Resgatar a concepção de questão social como forma de refletirmos sobre a possibilidade de a questão social, ou, as expressões da questão social, se constituir em nosso objeto profissional, é o objetivo deste artigo.

Palavras-chaves: serviço social, objeto, questão social





Ter como objeto de análise o objeto do Serviço Social é sempre um desafio. O Serviço Social é uma profissão legitimada socialmente, isto significa que ele tem uma função social. As profissões são criadas para responderem às necessidades dos homens. O desenvolvimento das forças produtivas colocam as necessidades de novas profissões, assim como considera outras desnecessárias. Mas, mesmo respondendo a uma necessidade social, o que pode ser corroborado pelo número de assistentes sociais inseridos no mercado de trabalho; pelo fato de que eles, efetivamente, trabalham desenvolvendo ações que tem um produto, produto social com dimensões econômicas e políticas; ainda assim, o Serviço Social mantém, historicamente, o dilema da especificidade profissional. Especificidade, esta, que é dada pelo objeto profissional. Em termos bastante simples, a questão é: sobre o que trabalha o Serviço Social? A resposta a esta questão responde, também, com qual objetivo trabalha o Serviço Social.

O objeto do Serviço Social, neste sentido, está, intimamente, vinculado a uma visão de homem e mundo; fundamentado numa perspectiva teórica que, no modo capitalista de produção, implica em uma opção política – a teoria norteadora da ação, a ação que re-constrói a teoria, demonstram de que lado está o Serviço Social. E, desde o Movimento de Reconceituação, o Serviço Social tem construído uma ação voltada para a maioria da população. Mas esta não foi sempre sua história.


O Objeto: da incapacidade individual às determinações estruturais



Em 62 anos, 1937 a 1999, o Serviço Social realizou uma transformação no interior da profissão. Começou creditando aos homens a “culpa” pelas situações que vivenciavam, e acreditando que uma prática doutrinária, fundamentada nos princípios cristãos, era a chave para a “recuperação da sociedade”. Chega, em 1999, assumindo uma postura marxiana, analisando que a forma de produção social é a causa prioritária das desigualdades – os homens, individualmente, não são desiguais, a forma de produção e apropriação do produto social é que produz as desigualdades, modo de produção este que deve ser reproduzido, para manter a dominação de classe. É um salto elogiável para uma profissão que começou querendo moldar os homens de acordo com os princípios cristãos de respeito à autoridade, e, hoje, tem, nos homens, a autoridade máxima a ser respeitada; uma profissão que tinha nos homens o objeto do seu trabalho, e, hoje, entende que os homens são sujeitos da história.

O objeto do Serviço Social, no Brasil, tem, historicamente, sido delimitado em virtude das conjunturas políticas e sócio-econômicas do país, sempre tendo-se em vista as perspectivas teóricas e ideológicas orientadoras da intervenção profissional.

Assim, é que, no início do Serviço Social no Brasil, 1937, o objeto definido era o homem, mas um homem específico: o homem morador de favelas, pobre, analfabeto, desempregado, etc. Enfim, entendia-se que esse homem era incapaz, por sua própria natureza, de “ascender” socialmente. Daí que o objeto do Serviço Social era este homem, tendo por objetivo moldá-lo, integrá-lo, aos valores, moral e costumes defendidos pela filosofia neotomista.

Posteriormente, o Serviço Social ultrapassa a ideia do homem como objeto profissional. Passa-se à compreensão de que a situação deste homem – analfabeto, pobre, desempregado, etc. – é fruto, não só de uma incapacidade individual, mas, também, de um conjunto de situações que merecem a intervenção profissional. O objeto do Serviço Social se coloca, então, como a situação social problema:

“... o Serviço Social atua na base das inter-relações do binômio indivíduo-sociedade. [...] Como prática institucionalizada, o Serviço Social se caracteriza pela atuação junto a indivíduos com desajustamentos familiares e sociais. Tais desajustamentos muitas vezes decorrem de estruturas sociais inadequadas” (Documento de Araxá, 1965, p.11).

Na década de 70, com a mobilização popular contra a ditadura militar, o Serviço Social revê seu objeto, e o define como a transformação social. Apesar do objeto equivocado, afinal a transformação social não se constitui em tarefa de nenhum profissional – é uma função de partidos políticos; o que este objeto, efetivamente, representou foi a busca, pelas assistentes sociais, de um vínculo orgânico com as classes subalternizadas e exploradas pelo capital. E é esta postura política que tem marcado os debates do Serviço Social até os dias atuais. Teoricamente, o Serviço Social passa a orientar-se pela análise marxiana da sociedade burguesa, mas abandonou a transformação social como objeto profissional e, no âmbito da ABESS/CEDEPSS o objeto passou a ser definido como a questão social, ou as expressões da questão social:

“O assistente social convive cotidianamente com as mais amplas expressões da questão social, matéria prima de seu trabalho. Confronta-se com as manifestações mais dramáticas dos processos da questão social no nível dos indivíduos sociais, seja em sua vida individual ou coletiva” (ABESS/CEDEPSS, 1996, p. 154-5).

O que é questão social?

 


A concepção de questão social está enraizada na contradição capital x trabalho, em outros termos, é uma categoria que tem sua especificidade definida no âmbito do modo capitalista de produção.

A concepção de questão social mais difundida no Serviço Social é a de CARVALHO e IAMAMOTO, (1983, p.77):

“A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão”.

Não contraditória à esta concepção, temos a de TELES, (1996, p. 85):

“... a questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação”.

Portanto, a questão social é uma categoria que expressa a contradição fundamental do modo capitalista de produção. Contradição, esta, fundada na produção e apropriação da riqueza gerada socialmente: os trabalhadores produzem a riqueza, os capitalistas se apropriam dela. É assim que o trabalhador não usufrui das riquezas por ele produzidas.

A questão social representa uma perspectiva de análise da sociedade. Isto porque não há consenso de pensamento no fundamento básico que constitui a questão social. Em outros termos, nem todos analisam que existe uma contradição entre capital e trabalho. Ao utilizarmos, na análise da sociedade, a categoria questão social, estamos realizando uma análise na perspectiva da situação em que se encontra a maioria da população – aquela que só tem na venda de sua força de trabalho os meios para garantir sua sobrevivência. É ressaltar as diferenças entre trabalhadores e capitalistas, no acesso a direitos, nas condições de vida; é analisar as desigualdades e buscar forma de superá-las. É entender as causas das desigualdades, e o que essas desigualdades produzem, na sociedade e na subjetividade dos homens.

E as consequências da apropriação desigual do produto social são as mais diversas: analfabetismo, violência, desemprego, favelização, fome, analfabetismo político, etc.; criando “profissões” que são frutos da miséria produzida pelo capital: catadores de papel; limpadores de vidro em semáforos; “avião” – vendedores de drogas; minhoqueiros – vendedores de minhocas para pescadores; jovens faroleiros – entregam propagandas nos semáforos; crianças provedoras da casa – cuidando de carros ou pedindo esmolas, as crianças mantém uma irrisória renda familiar; pessoas que “alugam” bebês para pedir esmolas; sacoleiros – vivem da venda de mercadorias contrabandeadas; vendedores ambulantes de frutas; etc. Além de criar uma imensa massa populacional que frequenta igrejas, as mais diversas, na tentativa de sair da miserabilidade em que se encontram.

Como toda categoria arrancada do real, nós não vemos a questão social, vemos suas expressões: o desemprego, o analfabetismo, a fome, a favela, a falta de leitos em hospitais, a violência, a inadimplência, etc. Assim é que, a questão social só se nos apresenta nas suas objetivações, em concretos que sintetizam as determinações prioritárias do capital sobre o trabalho, onde o objetivo é acumular capital e não garantir condições de vida para toda a população.

Neste terreno contraditório entre a lógica do capital e a lógica do trabalho, a questão social representa não só as desigualdades, mas, também, o processo de resistência e luta dos trabalhadores. Por isto ela é uma categoria que reflete a luta dos trabalhadores, da população excluída e subalternizada, na luta pelos seus direitos econômicos, sociais, políticos, culturais. E é aí, também, que reside as transformações históricas da concepção de questão social. O avanço das organizações dos trabalhadores e das populações subalternizadas coloca em novos patamares a concepção de questão social. Se, no período ditatorial brasileiro pós-64 a luta prioritária era romper com a dominação política, hoje a luta é pela consolidação da democracia e pelos direitos de cidadania. As transformações no mundo do trabalho, seja com a substituição do homem pela máquina, seja pela erosão dos direitos trabalhistas e previdenciários, exigem, também, que se reatualize a concepção de questão social.

Importa ressaltar que a questão social é uma categoria explicativa da totalidade social, da forma como os homens vivenciam a contradição capital – trabalho. Ela desvenda as desigualdades sociais, políticas, econômicas, culturais, bem como coloca a luta pelos direitos da maioria da população, ou, como os homens resistem à subalternização, à exclusão, e à dominação política e econômica.

Considerando a concepção de questão social aqui, minimamente, debatida, resta-nos perguntar se é possível que ela se constitua em objeto do Serviço Social.

Questão Social : Objeto do Serviço Social?


IAMAMOTO, (1997, p. 14), define o objeto do Serviço Social nos seguintes termos:

“Os assistentes sociais trabalham com a questão social nas suas mais variadas expressões quotidianas, tais como os indivíduos as experimentam no trabalho, na família, na área habitacional, na saúde, na assistência social pública, etc. Questão social que sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem, se opõem. É nesta tensão entre produção da desigualdade e produção da rebeldia e da resistência, que trabalham os assistentes sociais, situados nesse terreno movido por interesses sociais distintos, aos quais não é possível abstrair ou deles fugir porque tecem a vida em sociedade. [...] ... a questão social, cujas múltiplas expressões são o objeto do trabalho cotidiano do assistente social”.

É indiscutível a inserção da intervenção do Serviço Social no âmbito das desigualdades sociais, ou, mais amplamente, da questão social. Entretanto, considerando a concepção de questão social, é de se perguntar se a mesma, ou suas expressões, podem se constituir em objeto de uma única profissão. Estamos partindo da concepção de que o objeto é o que demonstra, coloca, a especificidade profissional. Ora, entender a questão social como objeto específico do Serviço Social, das duas uma: ou se destitui a questão social de toda a abrangência conceitual, ou se retoma a uma visão do Serviço Social como o único capaz de atuar nas mudanças/transformações da sociedade.

Se pensarmos na abrangência da concepção de questão social, concluiremos que as mais diversas profissões têm suas atuações determinadas por ela: o médico que atende problemas de saúde causados por fome, insegurança, acidentes de trabalho, etc.; o engenheiro que projeta habitações a baixo custo; o advogado que atende as pessoas sem recursos para defender seus direitos; enfim, os mais diferentes profissionais que, também, atuam nas  expressões da questão social.

Há, ainda, uma outra reflexão possível: em sendo a questão social uma categoria que explicita, expressa, as desigualdades geradas pelo modo de produção capitalista, ela se colocaria, também, como objeto de todos aqueles que apostam no capitalismo como a forma perfeita de produção da vida social. Assim, ela, também, se expressaria nas políticas econômicas, sociais, culturais, traçadas em âmbito governamental, para manter as classes que vivem do trabalho subordinadas e dominadas. Ou seja, se a manifestação da desigualdade, a luta pelos direitos sociais e de cidadania, são uma expressão da questão social, não interessa as classes detentoras dos poderes políticos e econômicos que haja um acirramento da contradição, viabilizando, desta forma, espaços de organização da população. Neste sentido, a contradição capital – trabalho também é um objeto dos que buscam, na manutenção do capitalismo, a garantia de privilégios econômicos e políticos.

Segundo FALEIROS, (1997, P. 37):

“... a expressão questão social é tomada de forma muito genérica, embora seja usada para definir uma particularidade profissional. Se for entendida como sendo as contradições do processo de acumulação capitalista, seria, por sua vez, contraditório colocá-la como objeto particular de uma profissão determinada, já que se refere a relações impossíveis de serem tratadas profissionalmente, através de estratégias institucionais/relacionais próprias do próprio desenvolvimento das práticas do Serviço Social. Se forem as manifestações dessas contradições o objeto profissional, é preciso também qualificá-las para não colocar em pauta toda a heterogeneidade de situações que, segundo Netto, caracteriza, justamente, o Serviço Social”.

Portanto, definir como objeto profissional a questão social, não estabelece a especificidade profissional. Podemos entender na sugestão de FALEIROS, que qualificar a questão social significa apreender o que compete ao Serviço Social no âmbito da questão social. Se falarmos, por exemplo, nas expressões sociais da questão social, estaremos, minimamente, definindo um espaço de atuação profissional.

Há que se ressaltar que, para FALEIROS, entretanto, o objeto do Serviço Social se define pelo empowerment:

“A questão do objeto profissional deve ser inserida num quadro teórico-prático, não pode ser entendida de forma isolada. Penso que no contexto do paradigma da correlação de forças o objeto profissional do serviço social se define como empoderamento, fortalecimento, empowerment do sujeito , individual ou coletivo, na sua relação de cidadania (civil, política, social ,incluindo políticas sociais), de identificação ( contra as opressões e discriminações), e de autonomia ( sobrevivência, vida social, condições de trabalho e vida...)” (fonte: correspondência pessoal, 15/10/1999)

Não estamos defendendo, aqui, a opção por um ou outro objeto. O fundamental é repensarmos como o objeto de Serviço Social tem sido colocado, e como poderemos revê-lo para darmos objetividade à atuação profissional.

Entendemos que, a cada situação, temos que reconstruir o objeto profissional. Entretanto, ele tem determinações mais amplas, e essa reconstrução tem por finalidade, apenas, garantir, no processo de intervenção, as particularidades de cada situação, inserida no contexto específico de onde atuamos. 


Ednéia Maria Machado 

Assistente Social, professora do Departamento de Serviço Social da UEL, doutora em Serviço Social.




sábado, 7 de setembro de 2013

Desmistificando o "terceiro setor"

 Resenha crítica do livro: Terceiro Setor e Questão Social: Crítica ao padrão emergente de intervenção social. MONTAÑO, Carlos.

 

 

Nos dias atuais é de suma importância a discussão do papel desempenhado pelas Organizações Não-Governamentais — ONGs—, Fundações, Associações etc., que compõem o chamado “terceiro setor”.

Em primeiro lugar, porque é necessário explicitar o que vem a ser este setor, o que tem de diferente ou de especial para ser designado desta forma. Ainda imperam muitas imprecisões nas tentativas de definições do termo. Em segundo lugar, porque essa é uma discussão que não deve ficar apenas na seara dos defensores do "terceiro setor", dentro e fora dos meios acadêmicos, mas deve ser assumida como objeto de investigação pelos intelectuais comprometidos com uma análise crítica.

A denominação “terceiro setor” se explicaria, para diferenciá-lo do Estado (Primeiro Setor) e do setor privado (Segundo Setor). Ambos não estariam conseguindo responder às demandas sociais: o primeiro, pela ineficiência; o segundo, porque faz parte da sua natureza visar o lucro.

Essa lacuna seria assim ocupada por um “terceiro setor” supostamente acima da sagacidade do setor privado e da incompetência e ineficiência do Estado. É comum na literatura sobre o tema classificá-lo como “sem fins lucrativos”.

Nesta linha de raciocínio, permanece sem questionamento o fato das fundações empresariais, que financiam direta ou indiretamente algumas ONGs, fazerem uma atuação “direta” em uma determinada “comunidade”, geralmente no mesmo espaço geográfico onde estão instaladas suas fábricas; e, não se envergonharem de pagarem baixos salários para os seus funcionários ou até mesmo em demiti-los.

É no enfoque diferenciado destas e outras questões que está o mérito do livro de Carlos Montãno. Remando contra a maré, Montaño vai aos poucos, de maneira clara e objetiva, desmistificando o chamado “terceiro setor”, colocando-o no lugar que de fato ocupa: dentro da lógica de reestruturação do capital.

Sob este ângulo, o “terceiro setor” perde o glamour. Deixa de ser visto como querem seus defensores e mentores: a forma encontrada pela “sociedade civil” para preencher a lacuna deixada pelo Estado. Mesmo porque, para estes, não é função do Estado — ou pelo menos não apenas dele — o atendimento das áreas sociais.

Montãno deixa claro a importância do papel ideológico que o "terceiro setor" cumpre na implementação das políticas neoliberais e a sua sintonia com o processo de reestruturação do capital pós 70. Ou seja, flexibilização das relações de trabalho, afastamento do Estado das responsabilidades sociais e da regulação social entre capital e trabalho. No entanto, o Estado, permanece como instrumento de consolidação “hegemônica do capital mediante seu papel central no processo de desregulação e (contra) reforma estatal, na reestruturação produtiva, na flexibilização produtiva e comercial, no financiamento ao capital, particularmente financeiro” (2002:17).

O “terceiro setor” que, aparentemente, pode parecer um espaço de participação da sociedade, representa a fragmentação das políticas sociais e, por conseguinte, das lutas dos movimentos sociais. Neste sentido, como vimos pela Reforma do Estado, levada a cabo por Bresser Pereira, o “terceiro setor” é colocado num patamar de “co-responsabilização” das questões públicas junto ao Estado, propiciando a sua desresponsabilização com o eufemismo de “publicização”.

Nas palavras de Montãno, o que está por trás da chamada “publicização” é

“por um lado, a diminuição dos custos da atividade social — não pela maior eficiência destas entidades, mas pela verdadeira precarização, focalização e localização destes serviços, pela perda das suas dimensões de universalidade, de não-contratualidade e de direito do cidadão — desonerando o capital. (...) É neste terreno que se inserem as ‘organizações sociais’, o ‘voluntariado’, enfim, o ‘terceiro setor’, como fenômeno promovido pelos (e/ou funcional aos planos dos) governos neoliberais, orientados para América Latina no Consenso de Washington” (2002: 47-8).

O livro apresenta-se com uma introdução, que tem status de capítulo, dois capítulos e a conclusão — que na minha concepção, poderia ter sido o terceiro capítulo. Mas para além da questão da forma (estranha para esta leitora), o livro ganha em conteúdo. No primeiro capítulo, “Características do debate dominante sobre o (conceito) ‘terceiro setor’”, Montãno faz um apanhado geral sobre a origem do termo, demonstrando, com muita acuidade, sua “debilidade teórica” e a forma como foi apropriado por parte dos intelectuais brasileiros que se propuseram a teorizar um conjunto de idéias, opiniões, até ações pontuais, que até para os seus adeptos, torna-se difícil chegar a um consenso sobre o que seja o “terceiro setor”. 

Visitando teóricos de Tocqueville a Hayek, passando por Habermas e outros, o que demonstra uma ampla pesquisa que explicita as conexões teóricas que influenciaram a literatura corrente do chamado “terceiro setor”, Carlos Montãno vai desmascarando a verdadeira “intenção” dos adeptos do conclamado “menos Estado e maior ‘sociedade civil’” (2002:87).

No segundo capítulo, “O Fenômeno (real) por trás do conceito (ideológico) de ‘terceiro setor’”, o autor faz, com agudeza, uma leitura que vai da legislação em vigor até ao que realmente importa: a inserção deste setor no debate político-ideológico, apresentando como ele realmente foi gestado: um apêndice das políticas neoliberais.

O que é chamado “terceiro setor” refere-se “a um fenômeno real, ao mesmo tempo inserido e produto da reestruturação do capital (...) para a função social de resposta à ‘questão social’, seguindo os valores da solidariedade local, da auto-ajuda e o da ajuda mútua” (2002:186).

Em “A sociedade civil como arena de lutas no processo de transformação social”, conclusão que bem poderia ser um terceiro capítulo, Montãno faz uma reflexão sobre os movimentos sociais e as ONGs. Deixa claro o lugar ocupado hoje por elas e, mais especificamente, a sua funcionalidade ao capital.

O autor toma o cuidado de separar as ONGs que buscam suas parcerias com os movimentos sociais das que, pelas suas práticas, procuram substituí-los. Remonta, historicamente, ao seu surgimento nos anos 70 quando “assumiam um papel articulador do lado dos movimentos sociais. Essas ONGs mudam de lugar nos anos 90: passaram a ocupar paulatinamente, o lugar dos movimentos sociais deslocando-os de seu espaço de luta e da preferência na adesão popular” (2002:271).

Montaño privilegia, metodologicamente, a pesquisa bibliográfica, e o faz com muita atenção.Encontramos, no trabalho, uma vasta fonte de pesquisa que vai, como já mencionamos, dos defensores do “terceiro setor” aos teóricos que sustentam a crítica feita pelo autor. Assim, mostrando erudição, Montaño vai de Marx aos contemporâneos.

Ao privilegiar a pesquisa bibliográfica, o autor secundarizou as falas dos “atores” do chamado “terceiro setor”. Talvez ficasse mais claro ainda o que esconde (ou revela) o discurso dos adeptos do “terceiro setor” ao declararem que a atuação na comunidade é um ingrediente a mais na “renhida batalha do mercado globalizado”. Portanto, está inserido na lógica do capital e, sim, visa o lucro! Este lucro, segundo as palavras de um dos seus defensores, está vinculado a “responsabilidade social” e, supostamente, uma “visão humanista”. Essas empresas teriam a oportunidade de desenvolver os negócios e de aumentar os lucros.

O que o autor, prontamente, pode argumentar que não era a pretensão deste livro.

Enfim, uma leitura obrigatória para todos aqueles que querem compreender a lógica da reestruturação do capital e a forma pela qual as políticas neoliberais são implementadas na sociedade brasileira e, ainda, como na prática, a maioria das ONGs e o chamado “terceiro setor” sucumbem à lógica do grande capital. 

 Por JOANA COUTINHO
Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP e membro do Núcleo de Estudos Ideologias e Lutas Sociais –NEILS